Sobre o "O filho de mil homens" de Hugo Mãe ou O (SA/) lacaniano

 Sobre “O filho de mil homens” de Valter Hugo Mãe 

(ou: sobre o S(A/) lacaniano)

Emmanuel Mello

Aldeia - Marina Rheingantz

Sem defender a comunhão universal dos povos, Hugo Mãe, avança sem piedade contra o “narcisismo da pequena diferença” propondo que o amor não é algo natural mas um ato humano.  Trata-se de uma defesa da vertente libertária do amor nas suas mais diversas modalidades. Só se é livre quando se poder amar “o que não é espelho”. Penso ser isso que Antonino ensina a Isaura. “Antonino disse à Isaura que amasse. (...) O toque de alguém, dizia ele, é o verdadeiro lado de cá da pele. Quem não é tocado não se cobre nunca, anda como nu. De ossos à mostra. E amar uma pessoa é o destino do mundo.”

Enquanto o enredo se desenvolve os “outros” vão deixando de ser o inferno que apontava Sartre e a liberdade de poder descobrir-se na diferença do outro, sentir-se acolhido e compreendido nesta diferença, sem a prisão narcísica do discurso comum vai envolvendo as personagens.

Além disso o livro me fala do mistério de, em meio ao trágico que é viver, inventar um jeito de ser feliz. E mostra isso com uma beleza sutil e delicada. Sem pieguismos, na minha modesta opnião.

 “Ser o que se pode é a felicidade”, conclui um Crisóstomo ao sentir que o amor era um encontro bom. Essa foi pra mim, a chave de leitura do livro. A felicidade não se encontra, se é. Nem sempre é uma epifania. Na maioria das vezes só é, no que se pode. Não se encontra a felicidade, se encontra pessoas, o sorvete, o amor, um bom vinho, o gozo, um livro espetacular, coisas. A felicidade é ser o que se pode ou, como diz Gilberto Gil, é aprender a só ser. 

Ser o que se pode, permite inclusive não ter que ser tudo, todo. Ser o que se pode é consentir com uma parcela de não-ser. Muita gente passa a vida sofrendo por não conseguir ser como o outro. É a sina de Antonino que para ter o amor da mãe tenta ser o que ela desejava, às custas de sua própria felicidade. Mas só se é feliz sendo sua diferença irreconciliável. 

Jacques Lacan aponta que esta é realmente a sina da humanidade. Buscamos no outro o que poderia nos definir como existência e isto nos aprisiona. Uma passagem com Isaura demonstra bem isso. “A Isaura lembrava-se de a mãe dizer: é bem mandada, a minha rapariga é bem-mandada, faz uma boa esposa. E o rapaz mandava. A Isaura assim obedecia, mas talvez obedecesse sobretudo a uma necessidade própria. A mãe, afinal, não lhe explicara ou talvez não entendesse de tudo. Obedecia porque queria dominar o rapaz.” Um espetacular fragmento da complexidade do querer humano. Isaura, identificada ao lugar de “bem-mandada”, julgava com essa posição obter o controle do outro. Identificada à posição de “bem-mandada”, obedecendo inertemente ao gozo egoísta do outro, esperava poder retirar dele tudo o que quisesse, poder inclusive obriga-lo a amá-la. Identificada à “bem-mandada” não precisaria se responsabilizar pela sua felicidade, pois tendo dado tudo, o outro não teria saída senão fazê-la feliz. Jogo perigoso cujo saldo foi sua mortificação, seu apagamento, ao constatar-se como objeto desprezado.

Mortificada, Isaura permanecia presa entre obedecer cegamente a um nome ou não ter nome algum: “Ela perguntou: o boneco tem nome. Ele respondeu: não. Ela disse: que sorte, assim não precisa de ser ninguém. Quem não é ninguém não lhe falta nada. Nem lhe falta o amor, nem espera por nada.”

“Se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução” já nos disse Drummond. Mas o coração é mais vasto que o mundo, que uma rima, que um nome. É esta a sina humana para Jacques Lacan. Por não saber à priori quem sou e nem o que devo desejar pra ser feliz, busco no Outro um nome que me localize. Pra ser é preciso aceitar receber do Outro um nome, um nome que me diferencie dos outros, que me organize no espaço do mundo, que me esclareça sobre o desejo e o desejar. 

Mas essa mesma nomeação que me liberta da inexistência, pode me aprisionar numa imagem que tento carregar pela vida. Tento então, ser a imagem desse nome mesmo quando ele não me serve mais. Insisto nisso, pois algo me diz que a satisfação que um dia tive ao me reconhecer nele, poderá em algum momento reaparecer e se tornar eterna. Saberei então sobre meu desejo e serei feliz pra sempre. Ledo engano.

Lacan, novamente, refere que todo problema está no fato de que “não há no Outro nenhum significante que possa, conforme o caso, responder pelo que sou”.  Não há nenhum nome que satisfaça integralmente ou definitivamente meu modo de ser. Não há quem me possa explicar a trilha tortuosa de meu próprio desejar. Preciso do Outro para nomear o meu desejo, mas não há no Outro nenhum desejo pronto esperando por mim pra que eu me refestele. 

Temos então que é minha inteira responsabilidade o trabalho de buscar fora de mim aquilo que possa aludir ao que sou, sem nunca me representar completamente. E está aí uma das mais importantes funções do amor na sua dimensão de encontro. Amo quem parece me decifrar, quem com seu toque me dá uma pele, ainda que momentaneamente. 

Assim, podemos pensar que a felicidade é ser o que se pode inventar com que o que se tem à mão. Não é um caminho pra dentro, mas pra fora. Freud dizia que o verdadeiro objetivo da análise era que o sujeito pudesse amar e trabalhar. Objetivo modesto? Talvez não. Talvez queira dizer que a felicidade é uma ação no mundo, que passa pelo mundo, que precisa do outro. É dessa forma que escuto o discurso de Crisóstomo ao filho na parte final do livro:

“todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. (...) Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós.”

Somos o resultado inédito de uma história que nos envolve e até mesmo nos precede. Preciso do Outro para ser. Preciso de sua língua, de sua comida, de sua arte, de sua poesia. Aproprio-me disso como forma de nomear algo em mim que, no limite, não tem nome, é uma completa diferença. Mas nessa diferença é bem provável que descubra que sou feliz. Pois apesar de precisar do Outro, apesar de usufruir da sua régua e de seu compasso, “meu caminho pelo mundo, eu mesmo traço”. E aquele abraço.


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